Sintaxe à vontade

Sintaxe à vontade

Talvez, sim, talvez eu fosse mulher, porque pensava no príncipe, a minha mão direita era a minha mão e a minha mão esquerda era a mão do príncipe, e a minha mão direita e a minha mão esquerda juntas eram as nossas mãos. Apertava a mão do príncipe sem cavalo branco, sem castelo, sem espada, sem nada. O príncipe tinha uns olhos fundos, escuros, um pouco caídos nos cantos e caminhava devagar, afundando a areia com seus passos. O príncipe tinha essa coisa - que eu esqueci como é o jeito - que se chama angústia. Eu chorava olhando para ele porque eu só tinha ele e ele não falava nada, nunca, nada. Só me tocava. E eu cantava para ele umas cantigas de ninar que eu tinha aprendido antes, muito antes, quando era menina. Talvez eu tenha sido uma menina daquelas de tranças, saia plissê azul-marinho, meias soquete e laço no cabelo. Talvez.
Sabe, às vezes eu me lembro de coisas assim, de muitas coisas, - como essa da menina - como se houvesse uma parte de mim que não envelheceu e que guardou. Guardou tudo, até o príncipe que um dia não veio mais. Não, não foi um dia que ele não veio mais, foram muitos dias. Em muitos dias ele não veio mais, a água do mar salgava a minha boca, o sol queimava a minha pele, eu tinha a impressão de ser de couro, um couro ressecado, sujo, mal curtido.
E havia essa coisa - que também esqueci o jeito - que se chamava ódio. De vez em quando eu pensava 'eu vou sentir essa coisa que se chama ódio'. E sentia. Crescia uma coisa vermelha dentro de mim, os meus dentes rasgavam coisas. Devia ser bom, porque depois eu deitava na areia e ria, ria muito, era um riso que fazia doer a boca, os músculos todos, e fazia as minhas unhas enterrarem na areia, com força. (...)

Não sei, até hoje não sei se o príncipe era um deles. Eu não podia saber, ele não falava. E, depois, ele não veio mais. Eu dava um cavalo branco para ele, uma espada, dava um castelo e bruxas para ele matar, dava todas essas coisas e mais as que ele pedisse, fazia com a areia, com o sal, com as folhas dos coqueiros, com as cascas dos cocos, até com a minha carne eu construía um cavalo branco para aquele príncipe. Mas ele não queria. Acho que ele não queria. E eu não tive tempo de dizer que quando a gente precisa que alguém fique, a gente constrói qualquer coisa, até um castelo.

(...) São muitas palavras, tantas quanto os fios de cabelo que caíram, quanto as rugas que ganhei, muito mais que os dentes que perdi. Esta coisa terrível de não ter ninguém para ouvir o meu grito. Esta coisa terrível de estar nesta ilha desde não sei quando. No começo eu esperava, que viesse alguém, um dia. Um avião, um navio, uma nave espacial. Não veio nada, não veio ninguém. Só este céu limpo, às vezes escuro, às vezes claro, mas sempre limpo. Uma limpeza que continua lá, além de qualquer coisa que esteja nele."

(Caio F.)

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